domingo, 25 de dezembro de 2011

Uma leitura linguística de "Atrás da Porta"

Posto aqui um texto do amigo Adriano Senkevics, que fez uma maravilhosa interpretação linguística da música "Atrás da Porta", de Chico Buarque e Francis Hime.

"Chico Buarque - Atrás da Porta"
Por Adriano Senkevics


Continuando com a seção de interpretações de letras do Chico Buarque, agora me arriscarei a fazer uma leitura da canção “Atrás Da Porta”, composta em 1972, uma belíssima canção sentimental com reviravoltas e grande criatividade, tanto no tratamento do emocional quanto no manuseio da gramática. Fiquem, primeiramente, com um vídeo desta música na famosa interpretação de Elis Regina:






Atrás Da Porta

Chico Buarque

Quando olhaste bem nos olhos meus
E o teu olhar era de adeus
Juro que não acreditei
Eu te estranhei
Me debrucei
Sobre teu corpo e duvidei
E me arrastei e te arranhei
E me agarrei nos teus cabelos
Nos teus pelos
Teu pijama
Nos teus pés
Ao pé da cama
Sem carinho, sem coberta
No tapete atrás da porta
Reclamei baixinho


Dei pra maldizer o nosso lar
Pra sujar teu nome, te humilhar
E me vingar a qualquer preço
Te adorando pelo avesso
Pra mostrar que inda sou tua
Só pra provar que inda sou tua…



Antes de mais nada, apenas um esclarecimento: a letra acima se baseia na versão original, com a expressão “Nos teus pelos”. Na época, a censura implicou com “pelos”, que foi substituído por “peito”. Neste vídeo da Elis Regina, ela canta“pelos”, mas em outras gravações nota-se que canta “peito”.

A música, narrada por um eu-feminino, compõe um cenário de separação, numa espécie paradoxal de amor e ódio, paixão e vingança. O título da canção, “Atrás da Porta”, já evidencia uma separação, com a porta servindo com barreira entre os dois lados. Além disso, mesmo que de modo discreto, tende-se a pensar que a parte de trás de uma porta é o lado de dentro de um ambiente, como se estivesse alguém ali, escondido, observando o mundo que está do lado de fora.

Os primeiros versos: “Quando olhaste bem nos olhos meus / E o teu olhar era de adeus” já indicam uma grande intimidade entre os interlocutores. Não foi necessária nenhuma palavra, senão apenas o olhar, para ficar subentendida a mensagem de partida. O eu-lírico, ao observar o olhar do amante, conseguiu decifrá-lo como um adeus; trocando em miúdos, a letra já começa com versos fortes, de grande significância.

Em “Juro que não acreditei / Eu te estranhei / Me debrucei / Sobre o teu corpo e duvidei”, a assonância causada pela terminação ‘ei’ reforça a idéia de pretérito perfeito. São ações que vão se sobrepondo no contexto. Primeiro, a moça não acredita, depois estranha, se debruça e duvida; a prova da grande intimidade está justamente no fato de não entender a despedida de seu amante, que se complementa pela íntima aproximação dos dois ao debruçar sobre o corpo do outro. A assonância permanece nos dois próximos versos.

Chico explora vários recursos em “E me arrastei e te arranhei / E me agarrei nos teus cabelos”. A repetição da consoante ‘r’, em aliteração, reforça uma sonoridade rasgante, um rebaixamento de dignidade para humilhação. Aqui, inicia-se um tom animalesco à música, que segue pelos próximos versos e realça a noção de amor como instinto selvagem. Arrastar, arranhar, agarrar no corpo do outro, lembram uma cena de briga entre animais.

A ideia é reforçada por “Nos teus pelos / Teu pijama / Nos teus pés / Ao pé da cama”, versos estes que indicam uma série de atitudes impulsivas, com a reiteração da consoante ‘p’, produzindo uma sonoridade exata, definida. Nós, humanos, não temos pelos suficientes para que alguém se agarre, porém, na canção, a visão selvagem dá destaque a esta ação. O jogo entre o pé do amante, real, e o pé da cama, uma figura de linguagem chamada catacrese, é muito comum na obra de Chico Buarque e cria uma continuidade interessante à letra.

Um dos versos mais interessantes é “Sem carinho, sem coberta”. Há uma quebra de paralelismo ao colocar a ausência de carinho, uma palavra que assume sentido abstrato, junto com ausência de coberta, um objeto concreto. De qualquer modo, ambas iniciam-se com a consoante ‘c’, uma letra graficamente semifechada que indica cobertura, conjunto.

A primeira estrofe termina com “No tapete atrás da porta / Reclamei baixinho”. O tapete atrás da porta destaca a submissão, pois tapete é um objeto geralmente sujo, próximo ao chão, usado para limpar os pés, ainda mais atrás da porta, como interpretado anteriormente. A inexpressividade da moça reafirma-se no ato de reclamar num tom de voz baixo, ou seja, querendo pôr para fora seus anseios, mas, no final das contas, guardando para si mesma; ainda que expressos, não atingem o receptor, o que se reforça pelo diminutivo do advérbio ‘baixo’.

Uma reviravolta acontece na segunda estrofe: “Dei pra maldizer o nosso lar / Pra sujar teu nome, te humilhar / E me vingar a qualquer preço”. Estes versos rompem com a submissão e mostram uma vingança inevitável, tendo como pano de fundo, logo, a selvageria.

A ambiguidade da canção fica a cargo de “Te adorando pelo avesso” que cria uma imagem confusa de amor. Adorar ao avesso pode ser justamente não adorar, como pode ser adorar mesmo com a negação do romance, um tipo de amor não correspondido, ou até humilhado, repudiado. Todavia, o avesso pode não estar associado ao verbo adorar, e sim ao pronome ‘te’, o que geraria uma imagem de adorar a pessoa ao contrário, ou seja, pelo seu lado negativo, pelos defeitos ao invés das qualidades, ou então de dentro para fora.

A letra finaliza com “Pra mostrar que inda sou tua / Só pra provar que inda sou tua…”, ótimo desfecho; Chico, em vez de escrever ‘ainda’, escreveu ‘inda’, para mostrar sua intimidade com a língua portuguesa, permitindo que ocorram desvios em prol da sonoridade natural das palavras em certos momentos. É uma contradição pensar em se vingar, em humilhar e sujar o nome do outro com apenas um objetivo: provar seu amor. Não poderia haver um fim melhor para uma música tão recheada de reviravoltas, metáforas implícitas e paradoxos constantemente marcados por versos fortes, intensos, cheios de significado.

Uma obra que, com certeza, figura entre as melhores de Chico, pela sua gigantesca apelação poética e gramatical, rica de conotações, ambiguidades, antíteses: típico deste autor de grande nome da Música Popular Brasileira.

4 comentários:

  1. A interpretação da Elis amplia o significado de cada palavra.

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  2. Gostei muito da análise da letra.Tem mais?

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  3. Amei seu comentário, pois amo essa música e sou também poeta. Sua interpretação linguística é maravilhosa. Bravo!

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