Posto aqui um texto do amigo Adriano Senkevics, que fez uma maravilhosa interpretação linguística da música "Atrás da Porta", de Chico Buarque e Francis Hime.
Continuando com a seção de interpretações de letras do Chico Buarque, agora me arriscarei a fazer uma leitura da canção “Atrás Da Porta”, composta em 1972, uma belíssima canção sentimental com reviravoltas e grande criatividade, tanto no tratamento do emocional quanto no manuseio da gramática. Fiquem, primeiramente, com um vídeo desta música na famosa interpretação de Elis Regina:
Atrás Da Porta
"Chico Buarque - Atrás da Porta"
Por Adriano Senkevics
Blog "Letras Despidas"
Continuando com a seção de interpretações de letras do Chico Buarque, agora me arriscarei a fazer uma leitura da canção “Atrás Da Porta”, composta em 1972, uma belíssima canção sentimental com reviravoltas e grande criatividade, tanto no tratamento do emocional quanto no manuseio da gramática. Fiquem, primeiramente, com um vídeo desta música na famosa interpretação de Elis Regina:
Atrás Da Porta
Chico Buarque
Quando olhaste bem nos olhos meus
E o teu olhar era de adeus
Juro que não acreditei
Eu te estranhei
Me debrucei
Sobre teu corpo e duvidei
E me arrastei e te arranhei
E me agarrei nos teus cabelos
Nos teus pelos
Teu pijama
Nos teus pés
Ao pé da cama
Sem carinho, sem coberta
No tapete atrás da porta
Reclamei baixinho
Dei pra maldizer o nosso lar
Pra sujar teu nome, te humilhar
E me vingar a qualquer preço
Te adorando pelo avesso
Pra mostrar que inda sou tua
Só pra provar que inda sou tua…
Antes de mais nada, apenas um esclarecimento: a letra acima se baseia na versão original, com a expressão “Nos teus pelos”. Na época, a censura implicou com “pelos”, que foi substituído por “peito”. Neste vídeo da Elis Regina, ela canta“pelos”, mas em outras gravações nota-se que canta “peito”.
A música, narrada por um eu-feminino, compõe um cenário de separação, numa espécie paradoxal de amor e ódio, paixão e vingança. O título da canção, “Atrás da Porta”, já evidencia uma separação, com a porta servindo com barreira entre os dois lados. Além disso, mesmo que de modo discreto, tende-se a pensar que a parte de trás de uma porta é o lado de dentro de um ambiente, como se estivesse alguém ali, escondido, observando o mundo que está do lado de fora.
Os primeiros versos: “Quando olhaste bem nos olhos meus / E o teu olhar era de adeus” já indicam uma grande intimidade entre os interlocutores. Não foi necessária nenhuma palavra, senão apenas o olhar, para ficar subentendida a mensagem de partida. O eu-lírico, ao observar o olhar do amante, conseguiu decifrá-lo como um adeus; trocando em miúdos, a letra já começa com versos fortes, de grande significância.
Em “Juro que não acreditei / Eu te estranhei / Me debrucei / Sobre o teu corpo e duvidei”, a assonância causada pela terminação ‘ei’ reforça a idéia de pretérito perfeito. São ações que vão se sobrepondo no contexto. Primeiro, a moça não acredita, depois estranha, se debruça e duvida; a prova da grande intimidade está justamente no fato de não entender a despedida de seu amante, que se complementa pela íntima aproximação dos dois ao debruçar sobre o corpo do outro. A assonância permanece nos dois próximos versos.
Chico explora vários recursos em “E me arrastei e te arranhei / E me agarrei nos teus cabelos”. A repetição da consoante ‘r’, em aliteração, reforça uma sonoridade rasgante, um rebaixamento de dignidade para humilhação. Aqui, inicia-se um tom animalesco à música, que segue pelos próximos versos e realça a noção de amor como instinto selvagem. Arrastar, arranhar, agarrar no corpo do outro, lembram uma cena de briga entre animais.
A ideia é reforçada por “Nos teus pelos / Teu pijama / Nos teus pés / Ao pé da cama”, versos estes que indicam uma série de atitudes impulsivas, com a reiteração da consoante ‘p’, produzindo uma sonoridade exata, definida. Nós, humanos, não temos pelos suficientes para que alguém se agarre, porém, na canção, a visão selvagem dá destaque a esta ação. O jogo entre o pé do amante, real, e o pé da cama, uma figura de linguagem chamada catacrese, é muito comum na obra de Chico Buarque e cria uma continuidade interessante à letra.
Um dos versos mais interessantes é “Sem carinho, sem coberta”. Há uma quebra de paralelismo ao colocar a ausência de carinho, uma palavra que assume sentido abstrato, junto com ausência de coberta, um objeto concreto. De qualquer modo, ambas iniciam-se com a consoante ‘c’, uma letra graficamente semifechada que indica cobertura, conjunto.
A primeira estrofe termina com “No tapete atrás da porta / Reclamei baixinho”. O tapete atrás da porta destaca a submissão, pois tapete é um objeto geralmente sujo, próximo ao chão, usado para limpar os pés, ainda mais atrás da porta, como interpretado anteriormente. A inexpressividade da moça reafirma-se no ato de reclamar num tom de voz baixo, ou seja, querendo pôr para fora seus anseios, mas, no final das contas, guardando para si mesma; ainda que expressos, não atingem o receptor, o que se reforça pelo diminutivo do advérbio ‘baixo’.
Uma reviravolta acontece na segunda estrofe: “Dei pra maldizer o nosso lar / Pra sujar teu nome, te humilhar / E me vingar a qualquer preço”. Estes versos rompem com a submissão e mostram uma vingança inevitável, tendo como pano de fundo, logo, a selvageria.
A ambiguidade da canção fica a cargo de “Te adorando pelo avesso” que cria uma imagem confusa de amor. Adorar ao avesso pode ser justamente não adorar, como pode ser adorar mesmo com a negação do romance, um tipo de amor não correspondido, ou até humilhado, repudiado. Todavia, o avesso pode não estar associado ao verbo adorar, e sim ao pronome ‘te’, o que geraria uma imagem de adorar a pessoa ao contrário, ou seja, pelo seu lado negativo, pelos defeitos ao invés das qualidades, ou então de dentro para fora.
A letra finaliza com “Pra mostrar que inda sou tua / Só pra provar que inda sou tua…”, ótimo desfecho; Chico, em vez de escrever ‘ainda’, escreveu ‘inda’, para mostrar sua intimidade com a língua portuguesa, permitindo que ocorram desvios em prol da sonoridade natural das palavras em certos momentos. É uma contradição pensar em se vingar, em humilhar e sujar o nome do outro com apenas um objetivo: provar seu amor. Não poderia haver um fim melhor para uma música tão recheada de reviravoltas, metáforas implícitas e paradoxos constantemente marcados por versos fortes, intensos, cheios de significado.
Uma obra que, com certeza, figura entre as melhores de Chico, pela sua gigantesca apelação poética e gramatical, rica de conotações, ambiguidades, antíteses: típico deste autor de grande nome da Música Popular Brasileira.
Quando olhaste bem nos olhos meus
E o teu olhar era de adeus
Juro que não acreditei
Eu te estranhei
Me debrucei
Sobre teu corpo e duvidei
E me arrastei e te arranhei
E me agarrei nos teus cabelos
Nos teus pelos
Teu pijama
Nos teus pés
Ao pé da cama
Sem carinho, sem coberta
No tapete atrás da porta
Reclamei baixinho
Dei pra maldizer o nosso lar
Pra sujar teu nome, te humilhar
E me vingar a qualquer preço
Te adorando pelo avesso
Pra mostrar que inda sou tua
Só pra provar que inda sou tua…
Antes de mais nada, apenas um esclarecimento: a letra acima se baseia na versão original, com a expressão “Nos teus pelos”. Na época, a censura implicou com “pelos”, que foi substituído por “peito”. Neste vídeo da Elis Regina, ela canta“pelos”, mas em outras gravações nota-se que canta “peito”.
A música, narrada por um eu-feminino, compõe um cenário de separação, numa espécie paradoxal de amor e ódio, paixão e vingança. O título da canção, “Atrás da Porta”, já evidencia uma separação, com a porta servindo com barreira entre os dois lados. Além disso, mesmo que de modo discreto, tende-se a pensar que a parte de trás de uma porta é o lado de dentro de um ambiente, como se estivesse alguém ali, escondido, observando o mundo que está do lado de fora.
Os primeiros versos: “Quando olhaste bem nos olhos meus / E o teu olhar era de adeus” já indicam uma grande intimidade entre os interlocutores. Não foi necessária nenhuma palavra, senão apenas o olhar, para ficar subentendida a mensagem de partida. O eu-lírico, ao observar o olhar do amante, conseguiu decifrá-lo como um adeus; trocando em miúdos, a letra já começa com versos fortes, de grande significância.
Em “Juro que não acreditei / Eu te estranhei / Me debrucei / Sobre o teu corpo e duvidei”, a assonância causada pela terminação ‘ei’ reforça a idéia de pretérito perfeito. São ações que vão se sobrepondo no contexto. Primeiro, a moça não acredita, depois estranha, se debruça e duvida; a prova da grande intimidade está justamente no fato de não entender a despedida de seu amante, que se complementa pela íntima aproximação dos dois ao debruçar sobre o corpo do outro. A assonância permanece nos dois próximos versos.
Chico explora vários recursos em “E me arrastei e te arranhei / E me agarrei nos teus cabelos”. A repetição da consoante ‘r’, em aliteração, reforça uma sonoridade rasgante, um rebaixamento de dignidade para humilhação. Aqui, inicia-se um tom animalesco à música, que segue pelos próximos versos e realça a noção de amor como instinto selvagem. Arrastar, arranhar, agarrar no corpo do outro, lembram uma cena de briga entre animais.
A ideia é reforçada por “Nos teus pelos / Teu pijama / Nos teus pés / Ao pé da cama”, versos estes que indicam uma série de atitudes impulsivas, com a reiteração da consoante ‘p’, produzindo uma sonoridade exata, definida. Nós, humanos, não temos pelos suficientes para que alguém se agarre, porém, na canção, a visão selvagem dá destaque a esta ação. O jogo entre o pé do amante, real, e o pé da cama, uma figura de linguagem chamada catacrese, é muito comum na obra de Chico Buarque e cria uma continuidade interessante à letra.
Um dos versos mais interessantes é “Sem carinho, sem coberta”. Há uma quebra de paralelismo ao colocar a ausência de carinho, uma palavra que assume sentido abstrato, junto com ausência de coberta, um objeto concreto. De qualquer modo, ambas iniciam-se com a consoante ‘c’, uma letra graficamente semifechada que indica cobertura, conjunto.
A primeira estrofe termina com “No tapete atrás da porta / Reclamei baixinho”. O tapete atrás da porta destaca a submissão, pois tapete é um objeto geralmente sujo, próximo ao chão, usado para limpar os pés, ainda mais atrás da porta, como interpretado anteriormente. A inexpressividade da moça reafirma-se no ato de reclamar num tom de voz baixo, ou seja, querendo pôr para fora seus anseios, mas, no final das contas, guardando para si mesma; ainda que expressos, não atingem o receptor, o que se reforça pelo diminutivo do advérbio ‘baixo’.
Uma reviravolta acontece na segunda estrofe: “Dei pra maldizer o nosso lar / Pra sujar teu nome, te humilhar / E me vingar a qualquer preço”. Estes versos rompem com a submissão e mostram uma vingança inevitável, tendo como pano de fundo, logo, a selvageria.
A ambiguidade da canção fica a cargo de “Te adorando pelo avesso” que cria uma imagem confusa de amor. Adorar ao avesso pode ser justamente não adorar, como pode ser adorar mesmo com a negação do romance, um tipo de amor não correspondido, ou até humilhado, repudiado. Todavia, o avesso pode não estar associado ao verbo adorar, e sim ao pronome ‘te’, o que geraria uma imagem de adorar a pessoa ao contrário, ou seja, pelo seu lado negativo, pelos defeitos ao invés das qualidades, ou então de dentro para fora.
A letra finaliza com “Pra mostrar que inda sou tua / Só pra provar que inda sou tua…”, ótimo desfecho; Chico, em vez de escrever ‘ainda’, escreveu ‘inda’, para mostrar sua intimidade com a língua portuguesa, permitindo que ocorram desvios em prol da sonoridade natural das palavras em certos momentos. É uma contradição pensar em se vingar, em humilhar e sujar o nome do outro com apenas um objetivo: provar seu amor. Não poderia haver um fim melhor para uma música tão recheada de reviravoltas, metáforas implícitas e paradoxos constantemente marcados por versos fortes, intensos, cheios de significado.
Uma obra que, com certeza, figura entre as melhores de Chico, pela sua gigantesca apelação poética e gramatical, rica de conotações, ambiguidades, antíteses: típico deste autor de grande nome da Música Popular Brasileira.
Disponível em: letrasdespidas.wordpress.com
A interpretação da Elis amplia o significado de cada palavra.
ResponderExcluirGostei muito da análise da letra.Tem mais?
ResponderExcluirAmei seu comentário, pois amo essa música e sou também poeta. Sua interpretação linguística é maravilhosa. Bravo!
ResponderExcluirMuito boa a análise. Amei!
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