sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Texto da apresentação da defesa de monografia – 22.11.2012


O presente trabalho intitula-se: “Viver pelo absurdo: os estádios de Sören Kierkegaard no cinema.” Seu objetivo é analisar os estádios de existência, criados pelo filósofo dinamarquês Sören Aabye Kierkegaard, através de personagens de obras cinematográficas. Como justificativa pessoal, este tema chamou muito a minha atenção, pois lida com Filosofia e Arte, conhecimentos humanos muito significativos para mim.

Desde o início de minha trajetória acadêmica imaginei que poderia trabalhar com ambas as partes, de modo a criar uma reflexão filosófica voltada para o ser humano. Na evolução do trabalho, tentei atribuir-lhe esta marca. Como justificativa acadêmica, o trabalho é relevante na medida em que liga duas coisas que são muito especiais para o próprio Kierkegaard. Na sua vida, é possível perceber que o filósofo era apaixonado pela arte, nas suas variadas formas, particularmente na ópera. Este trabalho soma-se ao esforço de outros estudiosos para ligar mais propriamente a filosofia kierkegaardiana com o fenômeno artístico, o que desenvolve a Filosofia Estética e o Existencialismo prefigurado pelo filósofo dinamarquês.

Caricatura de Sören Kierkegaard
O trabalho está dividido em três partes. O primeiro capítulo, intitulado “Contexto dos estádios de Sören Kierkegaard”, deseja percorrer o itinerário pessoal do filósofo até os estádios. Alguns aspectos de sua biografia serão tratados, assim como as obras que foram fundamentais para a sua criação.
O segundo capítulo, intitulado “Os estádios de existência kierkegaardianos”, é uma coletânea sobre possíveis “conceitos” dos estádios de existência. Para tanto, quatro comentadores discutem sobre o assunto, à luz dos textos de Sören Kierkegaard. Os próprios comentadores reconhecem que é difícil conceituar os estádios de existência, já que isto não era desejado pelo autor. Mas os conceitos supracitados serão definidos através de pontos comuns reconhecidos pelos comentadores em diversos excertos da extensa obra de Kierkegaard.
O terceiro capítulo, intitulado “Os estádios de Sören Kierkegaard aplicados no cinema”, é a aplicação prática do que foi estudado no segundo capítulo. Reunidos os pressupostos fundamentais dos estádios, o trabalho parte em busca destes personagens narrados por Kierkegaard. Neste passo, o cinema será utilizado como ferramenta que possibilita encontrar os homens que vivem os estádios de existência.
Michael Kierkegaard, o pai do
filósofo.
Sören Kierkegaard é um dos filósofos que têm sua vida intensamente ligada às suas obras. Desde pequeno, o filósofo foi atribulado pelo temor da culpa diante de Deus e da iminência do “Dies Irae”, do dia do juízo. Michael Kierkegaard, seu pai e um luterano fervoroso, incutiu no pequeno Sören uma espiritualidade angustiada que, assim como Verônica, recolhia no chão as gotas do sangue derramado de Cristo. Sendo extremamente inteligente e sem amigos, Kierkegaard era perseguido e zombado na escola, até o dia em que percebeu que possuía uma arma mais forte que os empurrões e os tapas de seus colegas: a ironia. Ele começou a ser respeitado quando reduzia os populares de sua sala às lágrimas. Esta característica, mesmo quando menino, marcou profundamente o espírito de Kierkegaard, o qual depois de adulto se tornou controverso e polêmico, particularmente nos seus debates contra a igreja estatal luterana e contra a filosofia de Georg Hegel.

Kierkegaard fez questão de não sistematizar seus estádios. Achava uma bobagem que o homem fosse definido por categorias totalmente abstratas e fora da realidade humana. O filósofo dinamarquês desconfiava de um sistema filosófico que abarcava toda a História e que ainda era aprovado por uma academia insensível à existência. Tal era a opinião de Kierkegaard: polêmica, ardente, dura de se ouvir. Embora o filósofo chamasse seus companheiros acadêmicos de “professores”, foram eles que receberam a maior parte de suas críticas.
Tal foi a filosofia e, acima de tudo, a história pessoal de Kierkegaard. Sua vida foi uma verdadeira reivindicação em favor da existência. O filósofo defendia e acreditava no Indivíduo como o único que pode tomar o controle de sua vida. Fazendo como poucos, o próprio autor viveu sua teoria: se antes Kierkegaard era oprimido pelo medo de Deus e pela culpa, quando alcançou a juventude começou a frequentar as óperas com óculos, roupas da moda e exalando uma cultura livresca. Sören havia se transformado no oposto do que seu pai havia lhe ensinado.

Regine Olsen, a mulher que balançou o coração de
Sören Kierkegaard.
Mas a existência dá voltas, e em 1838 Kierkegaard perde seu pai com 25 anos. Este acontecimento muda totalmente a sua vida, e ele, cursando Teologia, pede a mão de Regine Olsen em casamento. Mas ele se arrepende do pedido no dia seguinte. Então, Kierkegaard se vê numa das maiores angústias de sua vida: ele deve convencer Regine de que ele não é o homem certo para ela. Qual a sua atitude? Usar novamente de sua arma mais poderosa. Numa humilhação em público – Kierkegaard a deixa falando sozinha –, Regine se desencanta por ele e se casa em 1847 com Friedrich Schlegel, um comandante do exército dinamarquês. O filósofo apenas deseja que ela fique bem. Depois de um rápido encontro num porto, os dois nunca mais se viram – Regine veio para a América do Sul numa expedição com o marido.

Assim, Kierkegaard torna-se um homem cada vez mais arisco, arredio e solitário. A única companhia que possui é a riqueza herdada de sua família paterna, além dos livros brotados de sua angústia pungente e seu estudo brilhante. Sören esquecia Regine na escrita de seus livros, mas sentia-se tentado a escrever obras que despertassem a atenção da amada. Quem sabe um dia ela não poderia lê-los? Nesta época, Kierkegaard entrava no paradoxo de ter uma vida intelectual extraordinária e uma vida afetiva desastrada. Seu desespero foi tão grande que ele até mesmo desistiu de ser pastor. Se ele quisesse ter uma relação com alguém, seria apenas com o Cristo, e para isto ele devia buscar a Deus sozinho. Kierkegaard acreditava que as reuniões de sua igreja eram simplesmente uma cerimônia de Estado, onde os pastores eram funcionários do Rei e da Corte.

Estas mudanças até mesmo contraditórias no pensamento de Kierkegaard tornam claro o significado dos estádios de existência. Para o filósofo, os estádios são modos existenciais, que possuem uma visão-de-mundo própria e uma relação única com a existência. Exatamente por não escrever de maneira propriamente acadêmica, Kierkegaard não definiu um número exato de estádios. O presente trabalho, por sua vez, colheu cinco, que permitem traçar uma ideia geral sobre o pensamento do filósofo. 

Para Kierkegaard, a existência é o "palco" onde os estádios de existência
podem ser "encenados", ou seja, podem ser vividos através da escolha
consciente do homem.
O primeiro estádio é o que ele chama de estético. Este estádio é voltado para a contemplação, para a fruição artística e para o prazer a qualquer custo. O homem estético vive numa eterna possibilidade. Para ele, não existe o amanhã. O que importa para ele é o “interessante”, o que chama sua atenção. Mas este estádio, por não ter nada de concreto, leva o homem ao desespero.

O segundo estádio é chamado de irônico. Ele se difere do estético por ter uma consciência de um “eu real”, presente na História, e um “eu ideal”, sonhado pelo indivíduo. No entanto, o homem ironista passeia entre esse dois “eus”. Assim, ele também é levado ao desespero, pois não se afirma na existência.
O estádio humorístico ri da sua
existência, tal é o seu desespero.
O terceiro estádio elaborado por Kierkegaard é o estádio ético. Este é o estádio atribuído ao pai de família, ao homem comum e aos heróis. O ético possui uma missão, uma tarefa a fazer. Ele não se sente grande por isso – ao contrário, sente-se o menor dos homens! Mas ele afirma-se a si mesmo como indivíduo na existência. Poderia-se atribuir ao homem ético o adágio kantiano: “O céu estrelado acima de mim e a lei moral dentro em mim”. Mas ao sentir a obrigação diária ou o peso da tarefa que lhe foi confiada em nome do geral (do grupo), o homem ético entra em colapso. Ele não suporta o peso da lei e deseja libertar-se de seu desespero. Assim, ele passa para o estádio humorístico.

O estádio humorístico, sendo o quarto estádio, é representado pelo homem que ri de suas fraquezas. Ele tem certeza de que todos nós seremos salvos. Não é necessário, portanto, se preocupar com nada: “no momento certo a solução virá”, ele pensa. Mas ele ainda não possui a plena fé, aquela que é capaz de realizar maravilhas. E quando a existência o pressiona a tomar uma atitude, seu riso dá lugar ao ranger de dentes. O humorista não tem fé: ele ri do seu desespero. Kierkegaard afirma que este é o modelo de fé dos homens de todos os estádios supracitados. Se o estádio humorístico também leva ao desespero, pode existir alguma solução para o homem?
O estádio religioso é uma "relação absoluta com o Absoluto".
É impossível explicar esta relação, de maneira que o homem
religioso encara a solidão, a incompreensão e o paradoxo
existencial.
Kierkegaard aponta que a única maneira de vencer o paradoxo e a angústia da existência é viver o estádio religioso, chamado pelo autor de religiosidade B. O estádio religioso é o de Abraão, o pai da fé. Sendo chamado por Deus a largar sua terra, Abraão vai, sem se perguntar o porquê daquilo (como o ético talvez faria), nem ri das promessas de Deus (como o humorista talvez faria). Ele leva a sério a voz que ouve dentro de seu coração. O homem religioso não pode ser entendido por ninguém, como é o caso do homem ético. É impossível que ele fale de sua relação com Deus sem que desperte risos e disparates. O homem religioso, para Kierkegaard, é quem muitas vezes chamamos “loucos”.
Mas este estádio não necessita do consolo do prazer nem da orientação da ética: ele precisa apenas de Deus, transcendendo sua existência humana. Embora esteja com seu espírito atormentado pelo medo, segue em frente, pois o homem religioso tem a verdadeira fé, que move montanhas. Abraão creu, e por isso todas as promessas um dia a ele atribuídas foram cumpridas; este é o único estádio que, para Kierkegaard, pode superar a angústia existencial do ser humano. O homem religioso vive uma “relação absoluta com o Absoluto”, por isso confia saltando no escuro, pois tem certeza que Deus estará lá.

Depois de analisar os estádios de existência, o trabalho recorre ao cinema para investigar personagens que vivem em cada um dos estágios supracitados. Deste modo, cinco homens de cinco filmes diversos serão analisados sob o crivo da filosofia kierkegaardiana.

Dino (Hugo Carvana), de "Vai trabalhar, vagabundo". Ele representa
o estádio estético.
O estádio estético é representado por Secundino Meireles, o Dino, do filme “Vai trabalhar, vagabundo”, de 1973, dirigido pelo ator carioca Hugo Carvana. Possuindo a vida de um bon vivant, de um “malandro” (no sentido da boemia), Dino não tem nenhum prognóstico para o futuro. Ele deseja apenas viver a alegria de sentir prazer. Ao sair da prisão, o guarda lhe admoesta: “É preciso olhar o futuro com otimismo, Dino... Ver sempre o lado bom das coisas!” Ele, então, navega pela boemia carioca dos anos 70 e transforma sua vida numa verdadeira fanfarra. Dino aponta junto com Kierkegaard uma das características particularíssimas do estádio estético: a busca pelo prazer erótico. Além disso, Dino apenas vive pelo interessante. Deste modo, Dino é o retrato do estádio estético.

Zeca (Hugo Carvana), de "Bar Esperança: o último que fecha". Ele
representa o estádio irônico.
O estádio irônico é representado por Zeca, do filme “Bar Esperança: o último que fecha”, de 1983, também dirigido por Hugo Carvana. Zeca é um redator de novelas que de repente larga tudo para viver seu sonho: ser escritor de romances eróticos sob o pseudônimo de Shirley Almada. Sua mulher, Ana, é uma atriz famosa que encarna a vilã de uma novela. Zeca é um homem aflito por natureza, que recorre à mesa de bar como um divã de um psicanalista. Sua existência é regida por dois pólos: o “eu real”, que necessita de auto-afirmação, e o “eu ideal”, sua personalidade frágil que se refugia no mundo da boemia e da escrita. Zeca transita regularmente entre estas duas “esferas psicológicas”, o que lhe enche de angústia, por não existir nada de concreto nas duas. Sua mulher e seus amigos de copo assistem pouco a pouco sua derrocada, permeada pelo desespero e pela fuga do compromisso.

Steve Lopez (Robert Downey Jr.), de "O solista". Ele representa
o estádio ético.
O estádio ético é representado por Steve Lopez, no filme “O solista”, de 2009, dirigido por Joe Wright. Steve é o exemplo de um homem comum – jornalista, separado, cheio de trabalho. Sua vida muda drasticamente quando conhece Nathaniel, um músico de rua. Ao longo da história, Steve descobre que Nathaniel é esquizofrênico e então, o jornalista começa uma luta intensa para salvar o músico. Mas Nathaniel não deseja ser salvo de nada. Aquela é a sua única realidade: dialogar com Beethoven pelas ruas de Los Angeles e por seus instrumentos para dormir todas as noites. Depois de várias tentativas, todas elas fracassadas, Steve mostra o colapso da ética, definido por Kierkegaard como um querer libertar-se do sentimento de culpa causado pelo senso ético. Steve desespera-se por não saber mais o que fazer. Desta maneira, mesmo vivendo para salvar Nathaniel, Steve sente-se vazio e fracassado.

João Grilo (Matheus Nachtergaele), de "O auto da Compadecida". Ele
representa o estádio humorístico.
O estádio humorístico é representado pelo famoso personagem João Grilo, do filme “O auto da compadecida”, de 2000, dirigido por Guel Arraes. Grilo é um nordestino que sofre com a seca do sertão, a fome e o conservadorismo de sua cidade. Mas ele faz de tudo isto um motivo de mofa, de risada. Ele é totalmente irreverente: não respeita o coronel da cidade, o padeiro e sua esposa, o pároco da cidade, o bispo e nem mesmo o temido cangaceiro Severino Lampião. João Grilo possui piadas prontas e uma mente incrivelmente rápida para criar situações cômicas, que põe os outros personagens em terríveis embaraços. Mas, quando morto por um tiro e posteriormente julgado por Jesus Cristo, João deixa de lado o seu riso e lança-se ao desespero mortal. Ele diz ao Senhor que “estava perdido, pois chegou a hora da verdade, enquanto ele vivia na mentira.” Assim, o comentador Ricardo Gouvêa afirma que quando o humorista lança-se ao desespero, sua situação fica “pior do que antes”.

Francisco de Assis (Graham Faulkner), de "Irmão Sol, irmã Lua".
Ele representa o estádio religioso.
O último estádio, por fim, é representado por Francisco de Assis no épico filme “Irmão Sol, irmã Lua”, de 1972, dirigido pelo italiano Franco Zeffirelli. O filme retrata com singeleza a vida de um dos maiores santos da Igreja Católica. Depois de passar por um período de convalescença, Francisco deixa de lado a vida proposta por sua família (plena de glórias propiciadas pelas cruzadas), e resolve seguir o Evangelho de maneira radical. Mesmo sua família acha que ele enlouqueceu, mas ele não deixa de obedecer a voz de Deus. Francisco não tem necessidade de aplausos, nem de fruir o prazer, pois ele transcendeu tudo isso. Sua vida é uma “relação absoluta com o Absoluto”. Ele está em plena relação com Deus, e isso lhe traz uma felicidade tão intensa que somente ele pode compreender. Na sua relação de Indivíduo para com Deus, Francisco plenificou-se da Graça divina e superou o desespero que permeia a existência humana apenas com a sua fé.

Desejo ardentemente que este trabalho, além de contribuir na discussão sobre os estádios, possa provocar cada pessoa a assumir sua posição diante da existência. Para Kierkegaard, todos os estádios são relevantes e importantes. Ele não elenca como num sistema a sua ordem. Cabe ao indivíduo construir essa ordem; cabe ao indivíduo realizar o salto que o fará responder à sua vocação de ser existente. Que este trabalho seja uma oportunidade para pensar sobre como levamos nossa vida. Aqui encerro minhas colocações. Obrigado.

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